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CHURRASCARIA

STF, Telegram e apontamentos sobre a legitimidade e Estado democrático

Revista Consultor Jurídico,

Por Víctor Gabriel Rodríguez

A reação quase nula aos possíveis abusos de competência do STF (Supremo Tribunal Federal) explica-se por alguns fatores tão evidentes quanto não enunciados. Talvez os próprios ministros da Suprema Corte não se deem conta, mas o primeiro deles está em que a não contestação doutrinária de suas decisões têm uma causa pontual: as vozes do Direito são todas dependentes das decisões dos ministros.

Os juristas-advogados vivem sob obrigação de conquistar e manter a simpatia de cada um dos apenas dez juízes a que se distribuem suas causas na suprema instância; os juristas-juízes têm no STF seu chefe supremo, o que dispensa maiores explicações sobre independência; os juristas ligados à política são réus potenciais ou naturais da Corte; os do Ministério Público, em sua grande maioria, são apoiadores de interpretações punitivistas, mas, ainda assim, é deles que se esperaria maior reação, como fiscais da lei.

Sobram os juristas puramente vinculados à academia e à Universidade, que, entretanto, sofremos um policiamento político-moral que também trabalha contra a liberdade de opinião, pois pode estar vinculado à ascensão na própria carreira.

Sobre o caso específico [1], a que o título se refere, os demais atores sociais estão também biased, direcionados a um lado. Imprensa e comunidade artística, como tradicionais formadores de opinião, fecham-se em copas para criticar qualquer voz que se oponha à aprovação do PL das Fake News. A primeira, acreditando que a lei lhe devolverá aos tempos áureos, voltando a receber royalties pela nobre e árdua tarefa de produção de notícias; os últimos, de modo análogo, no aguardo que a lei lhes estabeleça direitos de autor pela reprodução do fruto de seu trabalho.

Pelo texto do PL 2630/2020, não recomendaria que ambos alimentassem essa esperança, mas isso é mera opinião pessoal. Fato é que, a todos esses interesses, soma-se o dos políticos não-juristas: não desejam a participação popular proporcionada pelas redes sociais, a não ser em momento de caçar votos. O interesse, outrora criticado, de que as decisões de Brasília não saíssem a público senão por um grupo de jornalistas seletos, hoje é enaltecido pelos detentores dessa seletividade.

Como mais surpreendente força, temos hoje um Judiciário literalmente advogando pela aprovação de uma lei, o que nos parece o mais grave desvio, objeto principal deste texto.

Contra todo esse elemento de forças, sobram as redes sociais, que, claro, potencialmente abusam de seu poder comunicativo. Mas a reação a este tem de ocorrer dentro dos limites da lei, sem que a alegação de existência de “milícias digitais” sirva como argumento único para o desrespeito reiterado às fronteiras constitucionais.

Direito ao debate
Talvez caiba dizer, muito rapidamente, que nosso texto não traz qualquer opinião sobre o PL das Fake News, senão em um único sentido: como Projeto, ele existe essencialmente para ser debatido, por todas as forças sociais.

Divulgação

Assim, uma mensagem que instigue a população a “falar com seu deputado aqui ou nas redes sociais, hoje”, por sensacionalista que seja, não alcança o status de ataque à democracia, a autorizar que o STF atue diretamente, à ausência de petição de um titular de direito violado, ainda que coletivo. Este, sim, é ponto relevante para o Estado democrático: a legitimidade da Suprema Corte em interferir na discussão de um projeto de Lei, em salto a todas as demais instâncias judiciais, que ali estão, ainda em funcionamento, para tutelar direitos e garantir liberdades.

Competência da Suprema Corte
Nossa questão-problema, a ser aqui solucionada, está em buscar a legitimidade da intervenção direta do STF, para intervir em uma mensagem de uma empresa de aplicativo de comunicação. Para tanto, usamos apenas um único documento, cuja origem foi bastante checada [2]: a decisão do ministro Alexandre de Moraes, datada de 10 de maio de 2023, que determina, entre outras providências, que a empresa Telegram [3] envie a seus usuários uma mensagem com conteúdo específico. Conteúdo de autoria, pelo que a decisão denota, do próprio Poder Judiciário.

Primeiro, é de notar-se que nossa interpretação ao ler o caso pela imprensa foi, de modo induzido ou não, equívoca: as notícias sobre o tema, em parte da mídia, fizeram crer que a ordem judicial contra a empresa Telegram havia sido provocada pelo relator do PL das Fake News, ofendido com a investida da empresa em face de suas ideias. Se assim fosse, nada mais justo, pelo artigo 5º, XXXV, da Constituição, que ele buscasse tutela jurisdicional, a um juízo singular, para seu direito de resposta.

Mas o caso não ocorre assim. A decisão aqui comentada, do inquérito 4781/DF, mostra que a Suprema Corte age sponte própria, a partir da mera leitura de uma notícia de jornal. A notícia, somente ela, é suficiente para que o STF ignore sua obrigação de inércia e mova-se a investigar a empresa, inclusive determinando que seus dirigentes sejam ouvidos pela Polícia Federal.

A justificativa, como de conhecimento público, reside no já vetusto inquérito que investiga, em citação literal, atos que “atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros; bem como de seus familiares, quando houver relação com a dignidade dos ministros”. Esse inquérito, tão controvertido em seus albores, foi afirmado à custa de buscas e apreensões e prisões, e hoje sua esfera de competência sedimentou-se como indiscutível. Porém essa esfera, sem outra explicação maior, alargou-se para “a verificação de esquemas de financiamento e divulgação em massa nas redes sociais, com o intuito de lesar ou expor a perigo de lesão a independência do Poder Judiciário e o Estado de Direito”. Foi com essa descrição temática que o STF avocou para si a reação punitiva contra a mensagem da empresa Telegram.

Essa descrição obriga-nos à busca do vínculo lógico: como o Supremo Tribunal fundamenta o caminho entre o ato da empresa Telegram, direcionado a seus usuários, até alcançar a “ofensa à independência do Poder Judiciário e do Estado de Direito”? Esse percurso, dito com todo respeito, não existe na decisão analisada. A não ser, em nossa opinião, que se verbalize o que a decisão meramente sugere: que o Supremo Tribunal, ou ao menos alguns de seus membros, está tão empenhado em advogar pela aprovação de tal PL, que qualquer movimento contra este é tomado como ofensa à Corte ou a seus membros. Se assim é, colocamo-nos diante de um grave problema de afirmação e reconhecimento de limites de tal Poder republicano. Pensando em grau moderado, o fato de que o Judiciário tanto se ocupe da aprovação de uma lei subverte a própria vontade do Legislativo, pois a obrigação daquele é fazer cumprir a norma, jamais a produzir; levado ao extremo, se o STF é composto por indicação do Executivo, o desprezo pelo princípio do juiz natural remete à aglutinação da vontade política neste único Poder, numa inaceitável retroalimentação.

A obrigação de retratação
Caso haja uma disposição da Corte de, em sua atuação jurisdicional, advogar pela aprovação do PL, será natural que a fundamentação de suas decisões não resista a uma análise isenta, ou seja, alijada de tal interesse.

De fato, a decisão judicial em comento, materialmente, não determina um “direito de resposta”, senão uma obrigação de retratação. Aquele, corriqueiro no sistema democrático, implica a divulgação de um texto sugerido pela parte lesionada e controlado pelo Poder Judiciário, a ser difundido pelo mesmo meio e com idêntica intensidade da mensagem ofensiva, em sentido vetorialmente inverso. E só.

Em tal decisão, existe a composição, pelo próprio ministro-relator, de um texto a ser difundido pela empresa Telegram, que a obriga a reconhecer-se como fraudulenta e desinformadora. Se nos atemos ao princípio dissuasor evidente da medida, preocupa a aplicação de uma sanção vexatória, mas isso não é o principal. O principal está na explicação dos critérios para a composição dessa mensagem de retração compulsória. Sem contraditório e não tendo o Poder Judiciário como controlador, senão como autor-ofendido, a possibilidade de que a mensagem esteja revestida de um teor abusivo incrementa-se.

Dito com todo o respeito, o texto não parece haver sido redigido com a acuidade de algo que será enviado a milhões de usuários, fazendo com que a empresa se confesse imoral e ilegal. Existe, no decorrer do único parágrafo da mensagem, um grave equívoco gramatical, no acento grave indicativo de crase. O erro normativo-idiomático, se não ofende a honorabilidade da Suprema Corte, dá indícios do que aqui defendemos: que a mensagem específica merecia controle, contraditório, possibilidade de embargos e demais recursos, tudo conjugando para a preservação da excepcionalidade da jurisdição suprema.

Conclusão
Em suma, a sociedade, por interesses coincidentes, está-se conformando para uma atuação que desequilibra os poderes e estanca o legítimo debate democrático. O Supremo Tribunal, em seu relevante papel de guardião do Estado de Direto, saberá aceitar a crítica a eventuais abusos, que são tendência natural de qualquer Poder, sem que isso o diminua e, muito menos, indique quebra de sua honorabilidade. Preservar-se para que continue a ser o ponto culminante e decisivo de um largo processo dialético é o que, em nossa humilde opinião, garantirá a legitimidade de suas decisões.