Brasília acordou escandalizada no dia 25 de novembro de 2015. Um senador da República havia sido preso preventivamente no exercício do mandato. Naquela manhã, o líder do governo, Delcídio do Amaral, foi detido, com autorização do Supremo Tribunal Federal, por obstrução de Justiça. Precursor de uma tendência dali em diante, Delcídio havia sido pego em áudios gravados por interlocutores para incriminá-lo. O senador ofereceu mesada de 50.000 reais e um plano de fuga para o ex-diretor da área Internacional da Petrobras Nestor Cerveró para que não firmasse um acordo de colaboração com a Operação Lava-Jato. Como se sabe, o plano nunca se concretizou. Cerveró e o próprio Delcídio tornaram-se delatores.
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Era a primeira vez desde a redemocratização do país, em 1985, que um parlamentar havia sido detido enquanto tinha mandato vigente. A prisão só é permitida pela Constituição de 1988 em caso de flagrante de crime inafiançável. É o que versa o artigo 53 da carta magna. A preventiva de Delcídio se tratava de uma nova interpretação do texto constitucional adotada pelo Supremo. O uso do mandato para obstruir a Justiça justificou o flagrante “a qualquer momento”, um crime continuado. Todos os ministros concordaram com a prisão.
Nesta semana, outra decisão do Supremo coloca mais um parlamentar em situação parecida. Também pego em um grampo, Aécio Neves (PSDB-MG) é acusado de pedir propina de 2 milhões de reais a Joesley Batista, sócio do grupo J&F. Ações controladas da Polícia Federal flagraram seu primo, Frederico Pacheco, recebendo parte do dinheiro. A Procuradoria-Geral da República juntou as provas, apresentou denúncia ao Supremo e também pediu também a prisão preventiva de Aécio baseada em uso do mandato para crime permanente. A Suprema Corte não o prendeu, mas o afastou do mandato. Mas, assim como a possibilidade de uma preventiva, o afastamento também não está prevista na Constituição.
Ambas as decisões estão em um rol de novas interpretações do Supremo no campo do Direito Penal. Nesta galeria, entra também o afastamento do mandato do ex-presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha (PMDB-RJ). Cunha era réu por ter recebido 5 milhões de dólares em propina por influência na compra de um campo de petróleo na África pela Petrobras. Segundo a PGR, Cunha utilizava a posição de presidente da Câmara para obstruir as investigações realizadas pela Operação Lava-Jato. O então relator, ministro Teori Zavascki, justificou o afastamento dizendo que “além de representar um risco para as investigações penais sediadas neste Supremo Tribunal Federal, é um pejorativo que conspira contra a própria dignidade da instituição por ele liderada”. Assim como no caso de Delcídio, os ministros acompanharam a decisão por unanimidade.
Os três pedidos de interdição foram protocolados pela Procuradoria-Geral da República, ainda sob a gestão de Rodrigo Janot. As consequências com Aécio, contudo, destoam dos outros dois casos. Cunha e Delcídio tiveram decisões unânimes no Supremo. O pedido de prisão preventiva do tucano foi negado e o afastamento, uma bola dividida: 3 a 2 na Primeira Turma. O voto de minerva foi de Luiz Fux. “Já que ele não teve gesto de grandeza, vamos auxiliá-lo a se portar tal como deveria e sair do Senado para poder comprovar a sua ausência de culpa nesse episódio”, disse o ministro. Além de Fux, votaram contra Aécio os ministros Roberto Barroso e Rosa Weber. Marco Aurélio Mello e Alexandre de Moraes votaram em favor do senador.
A repercussão no Congresso também foi diferente da dupla Cunha/Delcídio. O deputado e o senador foram cassados pouco tempo depois do afastamento. Desta vez, senadores saíram em defesa de Aécio, dizendo que a Casa tem direito de rever a decisão do Supremo. “É questionável a decisão. O Senado considera que a restrição de liberdade imposta ao Aécio no período noturno tem que ser comparada a uma prisão”, diz a EXAME o líder do PSDB no Senado, Paulo Bauer (PSDB-SC). “Ele não praticou crime inafiançável e não houve flagrante, não cabe a prisão nem outra decisão. É o que reza a Constituição. Não é posição do Paulo Bauer”.
Também apoiaram Aécio o senador Cássio Cunha Lima (PSDB-PB) e o ministro das Relações Exteriores e senador licenciado, Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP), tradicionais aliados do tucano. “A Constituição não prevê afastamento de mandato (…). É um ativismo judiciário”, disse aos jornalistas Cunha Lima. Os ministros basearam-se, contudo, em “medidas cautelares diversas à prisão”, contidas no Código de Processo Penal, artigo 319. Aécio deve se recolher à noite, não ter contato com outros investigados e precisa entregar seu passaporte. Assim, ministros fugiram do texto da Constituição que fala em prisão de parlamentares, dispensando a aprovação dos senadores, como seria no caso de uma prisão preventiva.
Com o cenário posto, notam-se as incongruências de ambas as partes. Com acusações tão semelhantes, por que o Supremo não autorizou a prisão de Aécio? E por que o Parlamento reagiu às ordens da Suprema Corte neste caso e não nos anteriores? EXAME consultou juristas e cientistas políticos para responder às questões.
Para o professor de Direito Constitucional da Fundação Getúlio Vargas e coordenador do projeto Supremo em Pauta, Rubens Glezer, as situações semelhantes deveriam ter decisões parecidas — ainda que inovadoras na interpretação da Constituição. “A estratégia da PGR foi justamente aproximar os casos [Delcídio e Aécio]. Assim, havia um espaço para o Supremo declarar a prisão preventiva de Aécio. O tribunal não quis fazer para não assumir o custo político da decisão”, afirma Glezer. “Foi um tiro de aviso, uma medida intermediária entre não fazer nada e a inovação ‘criticável’ de decretar uma preventiva”.
“Tenho dúvidas inclusive sobre a prisão de Delcídio. Era preciso ter provas claras e contundentes de culpa para mudar o entendimento e pedir uma prisão. Acredito que a decisão daquela época foi mais desproporcional”, afirma o também constitucionalista e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie Flávio de Leão Bastos Pereira. “Certamente pesa o posicionamento político de Aécio, levado em consideração até pelo Judiciário”.
Os “superpoderes” de Aécio Neves estão ligados a mais pura influência política. A posição combalida do PT no momento em que o processo surgiu contra Delcídio, em um momento em que seu partido era o maior foco da Lava-Jato, e a situação certa de queda de Eduardo Cunha, conforme surgiam provas contra ele nas investigações, faziam com que a defesa de ambos fosse “radioativa”. Aécio, por mais que responda a quase uma dezena de inquéritos no Supremo, ainda guarda influência sobre parcela representativa do PSDB, sendo o elo que compõe uma coalizão majoritária do governo de Michel Temer.
“Delcídio fazia parte de um partido em desgraça, sem maioria no Congresso, fazendo parte de um governo sem blindagem parlamentar e econômica no mercado. O Aécio é símbolo da situação contrária”, afirma o cientista político e professor do Insper Carlos Melo. “Esse governo tem proteção do Congresso e de importantes grupos da economia. A proteção ao Aécio está apenas nessa blindagem que o PT não tinha naquele momento”.
Outra diferença básica deste momento é que os parlamentares temem os precedentes abertos com as sanções a Aécio. No caso Delcídio, a Lava-Jato atingia o PT de forma muito mais intensa que outros partidos. Hoje, as investigações abalam os partidos transversalmente, inclusive figurões da base majoritária, como PSDB e PMDB. A situação chegou a tal ponto que até o PT se mostrou contra a decisão contra o rival.
“O mundo político vive uma certa ressaca após uma onda de ações judiciais. Agora há uma reação corporativa mais forte por parte dos senadores que havia naquele momento de Delcídio”, afirma Rafael Cortez, analista político da Tendências Consultoria. “A viabilidade do mandato é central. Vai além do ator específico. Considera como as ações do judiciário vão interferir no mandato parlamentar”.
A entrega de parcela dos 2 milhões de reais à parte, as polêmicas jurídicas não vão terminar já. Está sendo coordenada uma reação entre parlamentares da base, enquanto oposicionistas ameaçam “judicializar a polêmica”. Críticos a Aécio entendem como “desrespeito à decisão do Supremo” uma articulação para suspender o afastamento e prometem entrar com mandado de segurança contra a organização da base. Aécio, por sua vez, ainda pode, e vai, recorrer ao Plenário da Suprema Corte para tentar voltar ao Senado. Tendo em vista que em maio ele foi afastado em liminar de Edson Fachin e voltou às atividades quando o caso foi redistribuído a Marco Aurélio Mello, nada impede que tenhamos apenas um capítulo da novela interminável entre Judiciário e Legislativo.