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Um ano após sua entrada em vigor, Lei da Igualdade Salarial resulta em batalha de liminares

Um ano após sua publicação, a Lei da Igualdade Salarial vem sendo contestada por empresas na Justiça. A principal regra questionada é a da publicação dos relatórios de transparência salarial e de critérios remuneratórios. Algumas liminares já foram concedidas para afastar tal exigência por violações à liberdade empresarial e à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), embora especialistas no assunto entrevistados pela revista eletrônica Consultor Jurídico não concordem com essa interpretação.

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Lei exige divulgação de relatórios de transparência salarial; empresas contestam no Judiciário

A lei contestada, de julho do último ano, trata da igualdade salarial e de critérios remuneratórios entre homens e mulheres. Ela estabeleceu obrigações para empresas com cem ou mais empregados. A norma foi regulamentada pelo Decreto 11.795/2023. Este, por sua vez, foi regulamentado pela Portaria 3.714/2023 do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).

Ambos trouxeram regras sobre o relatório de transparência salarial e de critérios remuneratórios, que busca comparar de forma objetiva os salários, as remunerações e a proporção de ocupação de cargos. O relatório é elaborado pelo MTE com base em dados do sistema de prestação de informações trabalhistas ao governo federal.

A regulamentação da Lei da Igualdade Salarial estipulou, por exemplo, que o relatório precisa ser publicado nos sites ou nas redes sociais das empresas. Também é preciso apresentar um plano de ação para corrigir eventuais discrepâncias salariais.

O decreto e a portaria ainda citam diversas informações que devem constar do relatório, o que inclui os cargos ou as ocupações, com as respectivas atribuições, e os valores das remunerações.

Já existem decisões liminares que suspendem a divulgação do relatório, mas há também decisões que negam pedidos do tipo e determinam a aplicação da regra.

As empresas defendem que o relatório contém dados pessoais sensíveis dos empregados e seus salários. Outro argumento é que sua imagem poderia ser abalada com a divulgação de tais informações. Há ainda alegações de que as regras de elaboração do documento não são tão claras e de que a regulamentação extrapolou as previsões da lei.

Por outro lado, a Advocacia-Geral da União argumenta que os dados são anonimizados e que não há danos à imagem ou violação da liberdade porque o relatório traz estimativas, e não dados individualizados.

Polêmica judicializada

Em março deste ano, a 7ª Vara Cível Federal de São Paulo proibiu a União de fazer a uma empresa diversas exigências previstas na Lei da Igualdade Salarial, entre elas a divulgação e publicação do relatório de remuneração e critérios remuneratórios em site ou redes sociais.

A juíza Paula Lange Canhos Vieira citou receio de desrespeito à LGPD caso todas as informações fossem fornecidas: “Em empresas com estruturas gerenciais reduzidas, será perfeitamente possível identificar a remuneração de seus funcionários, o que contrasta com a determinação de fornecimento de ‘dados anonimizados’ determinada pela lei”, concluiu a julgadora.

Naquele mesmo mês, a juíza plantonista Pollyanna Kelly Maciel Martins Alves concedeu, no mesmo dia, duas liminares semelhantes em Varas Federais Cíveis do Distrito Federal: uma (na 14ª Vara) para 11 empresas de um mesmo grupo econômico e outra (na 8ª Vara) para as sociedades de advogados representadas pelo respectivo sindicato nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro (Sinsa).

A juíza suspendeu a divulgação dos relatórios, pois entendeu que a Lei da Igualdade Salarial criou obrigações que invadem a “liberdade da atividade econômica e negocial das empresas”.

Segundo ela, as diferenças salariais por motivos de gênero podem ser evitadas por meio da “regular fiscalização dos órgãos competentes” e sem a “publicização das informações da empresa”.

A lei já foi contestada no Supremo Tribunal Federal em duas ações diretas de inconstitucionalidade. Em uma delas, as autoras — a Confederação Nacional da Indústria (CNI) e a Confederação Nacional do Comércio, Bens, Serviços e Turismo (CNC) — afirmam que a divulgação do relatório causa dano injusto à reputação das empresas e que a elaboração de plano de carreira corporativo vai muito além da questão de gênero.

Já na outra ADI, o Partido Novo diz que a divulgação do relatório é inconstitucional, pois expõe informações sensíveis sobre estratégia de preços e custos das empresas, o que viola o princípio da livre iniciativa.

A advogada Gisela da Silva Freire, presidente do Sinsa e sócia do escritório Peixoto & Cury Advogados, diz que a publicação das informações salariais pode, de fato, “expor as políticas de remuneração da empresa a concorrentes, em especial em alguns setores mais competitivos, em que as políticas salariais são um diferencial importante”. Segundo ela, isso pode causar uma “desvantagem competitiva”.

Para a advogada, a exigência de divulgação é “questionável do ponto de vista legal” e “desproporcional”, pois “vai além do necessário para o atingimento dos objetivos da lei e pode causar grandes prejuízos à imagem da empresa”.

Gisela explica que a empresa exposta pode sofrer “críticas e julgamentos precipitados, especialmente nas plataformas onde a opinião pública é formada de maneira imediata, sem o conhecimento profundo da situação”.

Ana Paula Oriola de Raeffray, sócia do Raeffray Brugioni Advogados e doutora em Direito pela PUC-SP, afirma que a lei é “muito importante para reduzir as desigualdades salariais em razão do gênero”, mas aponta que “sua regulamentação tem lacunas”.

De acordo com ela, o decreto e a portaria deixam dúvidas “acerca das premissas para a elaboração do relatório, o que pode levar a distorções no seu resultado”.

Violações negadas

Por outro lado, em abril, a 8ª Vara Federal de Campinas (SP) negou o pedido de uma empresa e manteve a obrigação de divulgação do relatório. Da mesma forma, no último mês de junho, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região suspendeu uma decisão que isentava um supermercado de divulgar o documento.

A advogada Gisele Truzzi, especialista em Direito Digital, explica que não há infração à LGPD se os dados estiverem anonimizados. E a própria Lei da Igualdade Salarial determina tal anonimização dos dados do relatório.

A anonimização, explica ela, é a exclusão de informações como o nome do empregado, o CPF ou qualquer outro dado que permita a identificação do indivíduo. Com isso, a pessoa não fica exposta.

A lei de 2023 determina que a divulgação do relatório deve observar a proteção de dados pessoais tratada na LGPD. Já a regulamentação não prevê a divulgação de qualquer dado que identifique os empregados.

Maria Lucia Benhame, advogada especialista em Direito do Trabalho, lembra que as empresas, especialmente aquelas ligadas ao Pacto Global da Organização das Nações Unidas (ONU) — iniciativa para engajar companhias na adoção de certos princípios em áreas como direitos humanos e trabalho —, já publicam vários dados, muitos deles em seus programas de governança ambiental, social e corporativa (ESG).

No âmbito do Pacto Global, existem, por exemplo, os princípios de empoderamento das mulheres (WEPs), compromissos assinados pelas companhias para promover a igualdade de gênero. Empresas engajadas nisso e em outros movimentos similares costumam publicar relatórios com dados de empregados.

De acordo com Maria Lucia, a lógica de relatórios públicos com verificação estatal e participação sindical “existe em diferentes países do mundo, especialmente na Europa”.

Apesar da resistência das empresas à divulgação de dados, a advogada trabalhista Amanda Paoleli, do escritório Calcini Advogados, entende que a medida, assim como a elaboração dos planos de mitigação, é uma oportunidade “para as empresas contextualizarem e explicarem as estatísticas, auxiliando os órgãos competentes na fiscalização”.

Ela lembra que o inciso XXX do artigo 7º da Constituição proíbe a diferença de salários “por motivo de sexo”. O artigo 461 da CLT, por sua vez, determina salários iguais para trabalhos de igual valor no mesmo estabelecimento, “sem distinção de sexo”.

Para a advogada, a Lei da Igualdade Salarial “se insere no contexto dos princípios constitucionais do artigo 170, que orientam o exercício da livre iniciativa empresarial, incluindo a proteção dos empregados e a redução das desigualdades”.

Segundo Amanda, o poder público tem competência para legislar sobre os assuntos listados nesse artigo, de forma a concretizar os princípios, “inclusive diante do dever de fiscalizar contratos de trabalho visando à proteção dos direitos humanos, à garantia do não retrocesso social e à efetividade das normas já vigentes, que estabelecem há muito o princípio da igualdade”.

Alegação que não se sustenta

Na visão da também advogada trabalhista Fabíola Marques, professora da PUC-SP, “a alegação das empresas de que (a lei) viola a liberdade de contratação e administração não se sustenta”. Segundo ela, “as empresas não querem mostrar a verdade” — que o número de homens contratados é superior ao de mulheres.

Da mesma forma, “não interessa mostrar que existem poucas mulheres em cargos de direção e gestão e que as poucas que existem têm salários inferiores aos dos homens na mesma posição” — o que também ocorre em atividades mais simples.

“Como as empresas não querem ser vistas pelo público como empresas que discriminam e não incentivam o trabalho das mulheres, como não querem ser vistas como machistas, recorrem ao Judiciário para tentar justificar o injustificável”, assinala Fabíola.

Ela recorda que, conforme pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mulheres têm uma taxa de desemprego maior do que a dos homens, apesar da escolaridade superior.

Amanda Paoleli cita estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que mostra as disparidades: mulheres ganham cerca de 20% menos do que os homens e foram afetadas de forma desproporcional pela crise da Covid-19 — tanto em termos de segurança de renda quanto de responsabilidades familiares.